Sobre a Supremacia da Obediência
O sol estava
prestes a se deitar. Espreguiçava-se a
lua. Era quase hora das sombras pernoitarem.
Embora tivesse ocorrido tudo como
planejado, seus olhos estavam dolorosamente desidratados, sua mente
estafada. O aplicativo operou
ininterruptamente naquele turno produtivo. Foi possível adiantar o projeto em
três horas antes do prazo para entrega ao cliente. Se desvestiu de seu rift
glass e aplicou soro em sua retina. Alongou seu corpo. Era praticamente uma obrigação – por vezes
sofrida e pesada, por vezes automatizada, porém nunca bem sentida - dedicar trinta minutos de seus dias para
manter as células de seus músculos ativas a produzir e a consumir adenosinas,
antes que cressem estas estarem mortas, pois viver é produzir e consumir, assim
ordenara o ácido desoxirribonucléico que operara ininterruptamente em todos os
turnos afixados no calendário gregoriano convencionalmente adotado e
religiosamente seguido.
Ligou a tevê
holográfica. Era o julgamento de Cíntia, que toda a massa de obediência pública
consagrada em eucaristia, peticionava fervorosamente sua punição por
apedrejamento em streaming aberto. Seria bom que seus filhos acompanhassem a
audiência, os autorizou acesso para seu bom amadurecimento sócio-funcional.
Enviou mensagem para Laura e Felipe, afinal, era sua função de pai. A ré se
defendia da acusação de adultério. Sua defesa argumentava, inutilmente, que ela
fora obrigada a se casar com César, 30 anos mais velho, quando era uma adolescente
de apenas 14, e que se apaixonara, verdadeiramente, por Bruno, seu colega no
curso de decoração e design virtual, que fora sentenciado a 2 anos de
desconexão após flagrante. A perícia nos
autos detectava alterados índices de noradrenalina, serotonina e ocitocina no
cérebro Cíntia, que revelava uma mente em estado deturpado por apaixonamento. O juri
compreendeu que o estado neurológico de Cíntia exigia especializado tratamento
em clínica psiquiátrica antes de um novo julgamento para ser agendado, conforme
calendário gregoriano, para ali 8 meses, 5 dias, 7 horas e 32 minutos. Desta forma, Cíntia estaria
temporariamente absolvida da punição de apedrejamento. Seria medicada
adequadamente para reduzir seus níveis de testosterona, e submetida à cirurgia médica de circuncisão
feminina. Embora compreendesse que Cíntia havia sido relegada à fria
assexualidade até seus findos dias, Bernardo não ficara inteiramente satisfeito
com a decisão do juri. Temia que se a informação do não-apedrejamento chegasse
à sua mulher, acarretaria em uma influência ruim, tal como uma carta branca de
mínima e ameaçadora permissividade. #apedreja Emitiu opinião.
Bernardo era
um marido carinhoso e dedicado. Casara-se com Flávia, quando esta, aos 15 anos,
como costumavam agir as demais moças de sua idade nestas circunstâncias, estava
aos prantos no altar por temor de ser afastada de seus pais e entregue a um
desconhecido. Sensível que era ao sofrimento que Flávia manifestava,
prometeu-lhe em streaming aberto ser-lhe fiel, honroso marido e pai de seus
filhos, tratar-lhe com decoro e prover-lhe o tanto quanto lhe fosse necessário
para uma vida segura e confortável. Embora o contrato matrimonial estipulasse que
o contato dos noivos seria rotineiramente construído tão somente em plataformas
virtuais, Bernardo cumpriu à risca sua promessa de fidelidade. Escapou às
inúmeras tentações de sexo fortuito disponíveis em milhares de aplicativos
opensource indicados por seus colegas de empresa e concentrou toda sua vida em ampliar seus rendimentos e em
obter reconhecimento profissional. Era no sentido mais extenso da expressão um
homem “bem-sucedido”. Fez cursos
técnicos de linguagens digitais e graduou-se em engenharia de aviação virtual.
Seus pais sempre lhe afastaram obstinadamente de escolas que aplicassem métodos
de escrita cursiva, ao que Bernardo lhes foi muito grato por tal decisão, pois
sabia que isso lhe traria irrecuperável transtorno neuro-comportamental. Os
admirava, seus pais, quase que divinamente. Nada para Bernardo podia ser mais
exemplar de uma sociedade ordeira e segura que o alicerce moral que seus pais o
havia transmitido, e o que fosse afora daquela estrutura, seria risco. Bernardo
seria o guerreiro do exército do bem a proteger a ordem e a lisura. Desde que a
humanidade se conhece por bicho, a convivência é luta, competição e vigilância.
Tomou comprimidos
para dormir as seis horas e dezesseis minutos de sono restaurador e
rejuvenescedor de pele e cabelos com sonhos programados. Exec. 14.631:
“Era dia de
sua formatura em agricultura interestelar. Tivera feito uma premiada monografia
em retenção de sementes por agrotóxicos anti-gravitacionais em terrenos
lunares. Iria declamar um discurso para calouros ansiosos que enxergavam nele
seu futuro promissor. Já bem empregado como estagiário sênior, era da área
responsável por dizimar indígenas-alienígenas de satélites lunares que ocupavam
áreas agricultáveis. Todos o aplaudiram quando de suas mãos ejetaram-se mísseis
que causariam torrentes tempestuosas no céu. Flávia o amaria mais que nunca e
ela seria a esposa mais protegida da via-láctea. Ele era o guerreiro do
exército da ordem e da lisura, fora ferido em combate pela flecha oxidada de um
indígena primitivo na altura de seu rim esquerdo. Recebeu todos os cuidados de
um mártir e seu pênis aumentou em 2 centímetros”
O sol pulava
no horizonte com ânimo incompreendido de se expressar brilhantemente sem ao
menos ser visto. Bernardo conectou o rift glass enquanto tomava as pílulas de
proteínas e ômegas que sua nutricionista havia receitado. Ampliavam-se as
sombras nas paredes. Em duas horas e quarenta e seis minutos de processamento
naquele turno, o aplicativo corporativo de Bernardo travou completamente e emitiu
em seus tímpanos um zunido inaudível ensurdecedor de 27.000 hertz. Antes mesmo
de desligar apropriadamente o dispositivo, sacou-lhe longe da cabeça e, transtornado,
entontecido, balançava e batia nas têmporas para recuperar a audição. Olhou ao
redor e se deparou com com as paredes e sombras
de sua casa. Nada havia no recinto além de objetos inanimados e
silhuetas sem faces. Tudo o que era móvel e comunicável, estaria alí naquele
óculos, agora avariado, e naquelas paredes que exibiam uma forma vazia de si.
Bernardo se
aproximava em passos lentos e cambaleantes da porta que emoldurava sua sombra,
girou a maçaneta, abriu-a. Seu próximo passo o levou a uma caverna, dentro da
qual urrava como urso ferido. Acabara de ser golpeado fortemente no ombro por
seu concorrente neanderthal, num duelo pela cópula com uma fêmea virgem em sua
menarca. Sobreviveu, conquanto, pouco ferido, ao passo que seu concorrente teve
o crânio esmagado por pedra.
O disparador
do relógio de pulso de Bernardo aciona socorro médico. Tocam sirenes. Paramédicos
entram em seu quarto e se deparam com Bernardo debatendo-se no chão a
convulsionar delirantemente. Aplicam-lhe antídoto estabilizador, e em poucos
segundos Bernardo recupera consciência sem recordar-se de seus delírios de
sombra. Agradece encarecidamente o trabalho ágil e eficiente da equipe de
resgate. Oferece-lhes um licor raro de amêndoas por terem lhe salvado a vida e
restabelecido-lhe a sanidade. A equipe recusa por estar em turno de trabalho
gregorianamente convencionado. Grandes homens! Bernardo tem fé na humanidade.
Solicitou ao
mainframe uma nova unidade de rift glass com capacidade de processamento
adequada para seu negócio. Aproveitou para investir naquele novo algoritmo beta
tão especulado pelo mercado como a inovação a caminho do sucesso para aqueles
que almejavam a sublimação de se ter posse de onipotentes monopólios da
informação. E seu pênis aumentaria em 3 centímetros. A produção e entrega do
dispositivo deveria demorar 3 horas e 23 minutos. Enquanto aguardasse, Bernardo
decidiu sair à rua para entretenimento como não o fazia a 6 dias, 14 horas e 17
minutos. Se dirigiu ao Coliseum MMA
Theater, teatro de arena em que os desobedientes sentenciados de gênero masculino
eram jogados para digladiar com leões. Iria fazer uma aposta, mas não gostava
de correr muito risco, logo, caso o gladiador não vestisse armadura e escudo, e
portasse tão somente uma espada de ferro, apostaria no leão. Na tevê
holográfica do teatro, foi contada a história do desobediente: “Sérgio não
inspirava muita confiança em seus pais que se decepcionaram com seus propósitos,
quando este, ainda criança, se recusou a ter aulas de guitarra digital. Fizeram
de tudo para que Serginho menino se dedicasse a alguma luta marcial, mas o adolescente
quieto e cenhoso não demonstrava empolgação. Foi quando, em seus 17 anos, o Big
Brother detectou que Sérgio operava um avatar feminino que prestava serviços de
cabeleireiro. Sérgio iria se casar com Anabelle, filha de um bem-sucedido Arquiteto
de Horizontes Virtuais, o que traria bem-aventurança à sua família, que com o
egoísmo e desonra do menino desobediente, estaria agora em situação humilhante
e vergonhosa”. Em pouco tempo de disputa, Sérgio, que portava tão somente uma
espada de ferro, teve o tronco
esmigalhado por uma única abocanhada do leão. Satisfeito, Bernardo, viu sua
aposta lhe render 30%.
Dirigiu-se à
praça pública central. Tinha expectativa de que, talvez, na plataforma real, em
que a programação não pode ser selecionada, conseguisse presenciar a um apedrejamento.
Chegou e teve que aguardar ainda 24 minutos para conseguir participar, com fé na
humanidade, do suplício de Silvia, que por entregar-se à bruxaria e às artes,
recusou-se a casar com seu xará Bernardo. Quando soube da coincidência, logo
comprou uma pedra de 2 quilos por 23 bitcoins e lançou-a, com a força magnânima
dos guerreiros do exército da ordem e da lisura, na têmpora direita de Silvia,
que estava com corpo firmemente enterrado e imóvel até altura dos ombros. Apenas
7 pedras estavam disponíveis para venda, e Bernardo adquiriu a mais pesada. Desferiu-lhe,
orgulhoso, o objeto fatal. “Ah, pensou Bernardo, Flávia bem que poderia ter
presenciado o espetáculo! Veria como sou viril, defensor obstinado e justo de
minhas posses, e se sentiria a mulher mais protegida da via-láctea”