09 agosto 2015

O Futuro do Passado


Sobre a Supremacia da Obediência


O sol estava prestes a se deitar.  Espreguiçava-se a lua. Era quase hora das sombras pernoitarem.  Embora  tivesse ocorrido tudo como planejado, seus olhos estavam dolorosamente desidratados, sua mente estafada.  O aplicativo operou ininterruptamente naquele turno produtivo. Foi possível adiantar o projeto em três horas antes do prazo para entrega ao cliente. Se desvestiu de seu rift glass e aplicou soro em sua retina. Alongou seu corpo.  Era praticamente uma obrigação – por vezes sofrida e pesada, por vezes automatizada, porém nunca bem sentida -  dedicar trinta minutos de seus dias para manter as células de seus músculos ativas a produzir e a consumir adenosinas, antes que cressem estas estarem mortas, pois viver é produzir e consumir, assim ordenara o ácido desoxirribonucléico que operara ininterruptamente em todos os turnos afixados no calendário gregoriano convencionalmente adotado e religiosamente seguido.       
Ligou a tevê holográfica. Era o julgamento de Cíntia, que toda a massa de obediência pública consagrada em eucaristia, peticionava fervorosamente sua punição por apedrejamento em streaming aberto.  Seria bom que seus filhos acompanhassem a audiência, os autorizou acesso para seu bom amadurecimento sócio-funcional. Enviou mensagem para Laura e Felipe, afinal, era sua função de pai. A ré se defendia da acusação de adultério. Sua defesa argumentava, inutilmente, que ela fora obrigada a se casar com César, 30 anos mais velho, quando era uma adolescente de apenas 14, e que se apaixonara, verdadeiramente, por Bruno, seu colega no curso de decoração e design virtual, que fora sentenciado a 2 anos de desconexão após flagrante.  A perícia nos autos detectava alterados índices de noradrenalina, serotonina e ocitocina no cérebro Cíntia, que revelava uma mente em estado  deturpado por apaixonamento. O juri compreendeu que o estado neurológico de Cíntia exigia especializado tratamento em clínica psiquiátrica antes de um novo julgamento para ser agendado, conforme calendário gregoriano, para ali 8 meses, 5 dias, 7 horas  e 32 minutos. Desta forma, Cíntia estaria temporariamente absolvida da punição de apedrejamento. Seria medicada adequadamente para reduzir seus níveis de testosterona,  e submetida à cirurgia médica de circuncisão feminina. Embora compreendesse que Cíntia havia sido relegada à fria assexualidade até seus findos dias, Bernardo não ficara inteiramente satisfeito com a decisão do juri. Temia que se a informação do não-apedrejamento chegasse à sua mulher, acarretaria em uma influência ruim, tal como uma carta branca de mínima e ameaçadora permissividade.   #apedreja Emitiu opinião.
Bernardo era um marido carinhoso e dedicado. Casara-se com Flávia, quando esta, aos 15 anos, como costumavam agir as demais moças de sua idade nestas circunstâncias, estava aos prantos no altar por temor de ser afastada de seus pais e entregue a um desconhecido. Sensível que era ao sofrimento que Flávia manifestava, prometeu-lhe em streaming aberto ser-lhe fiel, honroso marido e pai de seus filhos, tratar-lhe com decoro e prover-lhe o tanto quanto lhe fosse necessário para uma vida segura e confortável.  Embora o contrato matrimonial estipulasse que o contato dos noivos seria rotineiramente construído tão somente em plataformas virtuais, Bernardo cumpriu à risca sua promessa de fidelidade. Escapou às inúmeras tentações de sexo fortuito disponíveis em milhares de aplicativos opensource indicados por seus colegas de empresa e concentrou toda  sua vida em ampliar seus rendimentos e em obter reconhecimento profissional. Era no sentido mais extenso da expressão um homem “bem-sucedido”.  Fez cursos técnicos de linguagens digitais e graduou-se em engenharia de aviação virtual. Seus pais sempre lhe afastaram obstinadamente de escolas que aplicassem métodos de escrita cursiva, ao que Bernardo lhes foi muito grato por tal decisão, pois sabia que isso lhe traria irrecuperável transtorno neuro-comportamental. Os admirava, seus pais, quase que divinamente. Nada para Bernardo podia ser mais exemplar de uma sociedade ordeira e segura que o alicerce moral que seus pais o havia transmitido, e o que fosse afora daquela estrutura, seria risco. Bernardo seria o guerreiro do exército do bem a proteger a ordem e a lisura. Desde que a humanidade se conhece por bicho, a convivência é luta, competição e vigilância.
Tomou comprimidos para dormir as seis horas e dezesseis minutos de sono restaurador e rejuvenescedor de pele e cabelos com sonhos programados. Exec. 14.631:
“Era dia de sua formatura em agricultura interestelar. Tivera feito uma premiada monografia em retenção de sementes por agrotóxicos anti-gravitacionais em terrenos lunares. Iria declamar um discurso para calouros ansiosos que enxergavam nele seu futuro promissor. Já bem empregado como estagiário sênior, era da área responsável por dizimar indígenas-alienígenas de satélites lunares que ocupavam áreas agricultáveis. Todos o aplaudiram quando de suas mãos ejetaram-se mísseis que causariam torrentes tempestuosas no céu. Flávia o amaria mais que nunca e ela seria a esposa mais protegida da via-láctea. Ele era o guerreiro do exército da ordem e da lisura, fora ferido em combate pela flecha oxidada de um indígena primitivo na altura de seu rim esquerdo. Recebeu todos os cuidados de um mártir e seu pênis aumentou em 2 centímetros”
O sol pulava no horizonte com ânimo incompreendido de se expressar brilhantemente sem ao menos ser visto. Bernardo conectou o rift glass enquanto tomava as pílulas de proteínas e ômegas que sua nutricionista havia receitado. Ampliavam-se as sombras nas paredes. Em duas horas e quarenta e seis minutos de processamento naquele turno, o aplicativo corporativo de Bernardo travou completamente e emitiu em seus tímpanos um zunido inaudível ensurdecedor de 27.000 hertz. Antes mesmo de desligar apropriadamente o dispositivo, sacou-lhe longe da cabeça e, transtornado, entontecido, balançava e batia nas têmporas para recuperar a audição. Olhou ao redor e se deparou com com as paredes e sombras  de sua casa. Nada havia no recinto além de objetos inanimados e silhuetas sem faces. Tudo o que era móvel e comunicável, estaria alí naquele óculos, agora avariado, e naquelas paredes que exibiam uma forma vazia de si.          
Bernardo se aproximava em passos lentos e cambaleantes da porta que emoldurava sua sombra, girou a maçaneta, abriu-a. Seu próximo passo o levou a uma caverna, dentro da qual urrava como urso ferido. Acabara de ser golpeado fortemente no ombro por seu concorrente neanderthal, num duelo pela cópula com uma fêmea virgem em sua menarca. Sobreviveu, conquanto, pouco ferido, ao passo que seu concorrente teve o crânio esmagado por pedra.
O disparador do relógio de pulso de Bernardo aciona socorro médico. Tocam sirenes. Paramédicos entram em seu quarto e se deparam com Bernardo debatendo-se no chão a convulsionar delirantemente. Aplicam-lhe antídoto estabilizador, e em poucos segundos Bernardo recupera consciência sem recordar-se de seus delírios de sombra. Agradece encarecidamente o trabalho ágil e eficiente da equipe de resgate. Oferece-lhes um licor raro de amêndoas por terem lhe salvado a vida e restabelecido-lhe a sanidade. A equipe recusa por estar em turno de trabalho gregorianamente convencionado. Grandes homens! Bernardo tem fé na humanidade.
Solicitou ao mainframe uma nova unidade de rift glass com capacidade de processamento adequada para seu negócio. Aproveitou para investir naquele novo algoritmo beta tão especulado pelo mercado como a inovação a caminho do sucesso para aqueles que almejavam a sublimação de se ter posse de onipotentes monopólios da informação. E seu pênis aumentaria em 3 centímetros. A produção e entrega do dispositivo deveria demorar 3 horas e 23 minutos. Enquanto aguardasse, Bernardo decidiu sair à rua para entretenimento como não o fazia a 6 dias, 14 horas e 17 minutos.  Se dirigiu ao Coliseum MMA Theater, teatro de arena em que os desobedientes sentenciados de gênero masculino eram jogados para digladiar com leões. Iria fazer uma aposta, mas não gostava de correr muito risco, logo, caso o gladiador não vestisse armadura e escudo, e portasse tão somente uma espada de ferro, apostaria no leão. Na tevê holográfica do teatro, foi contada a história do desobediente: “Sérgio não inspirava muita confiança em seus pais que se decepcionaram com seus propósitos, quando este, ainda criança, se recusou a ter aulas de guitarra digital. Fizeram de tudo para que Serginho menino se dedicasse a alguma luta marcial, mas o adolescente quieto e cenhoso não demonstrava empolgação. Foi quando, em seus 17 anos, o Big Brother detectou que Sérgio operava um avatar feminino que prestava serviços de cabeleireiro. Sérgio iria se casar com Anabelle, filha de um bem-sucedido Arquiteto de Horizontes Virtuais, o que traria bem-aventurança à sua família, que com o egoísmo e desonra do menino desobediente, estaria agora em situação humilhante e vergonhosa”. Em pouco tempo de disputa, Sérgio, que portava tão somente uma espada de ferro,  teve o tronco esmigalhado por uma única abocanhada do leão. Satisfeito, Bernardo, viu sua aposta lhe render 30%.

Dirigiu-se à praça pública central. Tinha expectativa de que, talvez, na plataforma real, em que a programação não pode ser selecionada, conseguisse presenciar a um apedrejamento. Chegou e teve que aguardar ainda 24 minutos para conseguir participar, com fé na humanidade, do suplício de Silvia, que por entregar-se à bruxaria e às artes, recusou-se a casar com seu xará Bernardo. Quando soube da coincidência, logo comprou uma pedra de 2 quilos por 23 bitcoins e lançou-a, com a força magnânima dos guerreiros do exército da ordem e da lisura, na têmpora direita de Silvia, que estava com corpo firmemente enterrado e imóvel até altura dos ombros. Apenas 7 pedras estavam disponíveis para venda, e  Bernardo adquiriu a mais pesada. Desferiu-lhe, orgulhoso, o objeto fatal. “Ah, pensou Bernardo, Flávia bem que poderia ter presenciado o espetáculo! Veria como sou viril, defensor obstinado e justo de minhas posses, e se sentiria a mulher mais protegida da via-láctea”